Meu mundo expresso de várias formas... (my routes, my rules)

segunda-feira, março 26, 2007

Cidade Perdida


Eulália, Amélia e Rosália cresceram juntas em uma pacata cidade escondida entre os vales da Serra Gaúcha. Para chegar até lá somente de carro ou de carona em algum caminhão de carga. Não existia sequer um ônibus com destino a linda cidadezinha fora-do-mapa. A única estrada que ligava a pequena e isolada cidade com o mundo moderno era de terra e ficava intransitável quando a chuva era abundante. As poucas pessoas que, por obra do destino, conheceram aquela aldeia quase-secreta nunca entenderam como era possível haver eletricidade naquele local tão escondido e oculto entre os vales serranos. Aliás, o que elas menos entendiam é como aquele vilarejo fora classificado como cidade?

As três amigas tinham praticamente a mesma idade, com a diferença de poucos meses. Desde pequenas elas mantinham um forte laço de amizade e se consideravam como irmãs. Mesmo depois de adultas, com suas responsabilidades e compromissos, elas conseguiam manter contato e sempre davam um jeito de se encontrar para colocar o assunto em dia. Cada qual tinha uma personalidade bem peculiar e todas possuíam um olhar profundo e instigante. Rosália era considerada atéia e incrédula, Amélia a rebelde e independente, Eulália a mais romântica e idealizadora de todas.

Os pais de Rosália eram católicos tão fiéis que conseguiam ser mais dedicados que o próprio Padre da única paróquia existente. Inclusive, alguns habitantes da cidade-vilarejo especulavam que eles poderiam ser até mais devotos do que o próprio Jesus encarnado. Sabe-se que o dito casal, que transpirava a bíblia sagrada, criou sua única filha com uma educação rígida e, logicamente, religiosa. Queriam que ela se tornasse freira e não pouparam esforços para isso. Escolheram seu nome ao imaginarem-na adulta, usando o manto das virgens e pregando as palavras divinas. Tanto empenho, entretanto, transformou Rosália em uma pessoa atéia e cética. Não se tornou incrédula somente em relação à religiosidade, mas também a tudo que ela não pudesse visualizar materialmente. Esquivava-se de tudo que era abstrato, inclusive do amor, pois tinha medo de amar. Não queria ter um cônjuge que quisesse coordenar a sua vida como seus pais tentaram
. Apesar de seus receios, ficou noiva de Jorge Luiz, filho do dono da ferragem, durante seis anos. Até descobrir que ele a traía com madame Mercedes, a cartomante. Desiludiu-se. Passou a definir o amor como um sentimento fruto de uma alucinação subliminar criada pela mente humana, inconscientemente, para suprir a ânsia... aquela ânsia, de amar um ser do sexo oposto (crescer-vos e multiplicar-vos).

Amélia teve uma criação oposta, bem liberal e transparente. Seus pais eram Hippies e desencanados, costumavam conversar abertamente com os nove filhos sobre qualquer assunto, incluindo amor e sexo. Incentivavam cada um dos filhos a lutarem pelos seus sonhos e os apoiavam no que era necessário. Nos tempos de colégio, Amélia sofreu muito com as piadas que faziam em relação ao seu nome. Era capaz de bater em qualquer pessoa, independente do tamanho e idade, que lhe dissesse: “Amélia é mulher do lar, criada para casar e servir o marido”. Ela sonhava com uma brilhante carreira de médica cirurgiã, que a levasse para bem longe daquele vale esquecido. Não pensava em casar e ter filhos, a vida a dois lhe causava certa repulsa. No fundo ela não queria correr o risco de ser tratada como uma simples dona-de-casa, assim como as ditas Amélias. Preocupava-se em iniciar sua tese de doutorado em algum lugar longe daquele horizonte. Teve poucas paixões na vida, nenhuma delas foi avassaladora. Não conseguia ser fiel a nenhum namorado, rolo ou caso... não queria nenhum comprometimento, nenhum vínculo, nada, nada que a prendesse naquele lugar, nada de sentimentalismos antes de conseguir terminar seus estudos.

Eulália era a mais romântica das três, foi a primeira e única a se casar. Quando pequena acreditava em todos os possíveis e inimagináveis contos de fadas. Era apaixonada por histórias mágicas, fantásticas e perfeitas. Sua mãe faleceu durante uma complicação no parto e seu pai era caminhoneiro, passava a maioria do tempo nas estradas. Eulália não possuía irmãos nem parentes próximos. Passou grande parte de sua existência sentindo-se uma órfã perdida em um imenso lar, vazio, sem família, só na companhia de uma madrinha com Alzheimer. Idealizadora, queria acreditar em um mundo onde houvesse mais encanto e mais afeto entre todos. Fugia das pessoas que lhe transmitissem a mesma frieza de seu pai. Talvez seja por esta razão que depois de adulta ainda sonhasse em encontrar o seu príncipe encantado, aquele que lhe seria predestinado. Casou-se com Adalberto, o filho do dono do supermercado, cuja família era rica e bem conceituada na tal cidadezinha. Ele parecia ser o marido que Eulália sempre sonhou: era bonito, atencioso, romântico, charmoso, educado e a travava como uma rainha. Telefonava do trabalho todos os dias para saber como ela estava, dizia que a amava muito e sempre avisava quando iria chegar mais tarde em casa devido a alguma reunião importante.

- Ele é perfeito demais, aí tem! – alertava Amélia, que desconfiava das constantes e inadiáveis reuniões que Adalberto dizia participar.
- Que nada amiga, ele trabalha muito para poder me dar essa vida de rainha. Se ele não me amasse não iria me trazer flores todos os dias, não me telefonaria. – justificava Eulália.

Rosália ficava muda toda vez que o assunto vinha à tona, temia magoar a amiga. Amélia, ao contrário, tentava alertar Eulália de que seu príncipe encantado não passava de um mulherengo irremediável. Quase todos naquela cidade de dois bairros sabiam que as reuniões inadiáveis ocorriam em um discreto casebre, de luz avermelhada, localizado fora da cidade-vilarejo, pouco depois do cemitério. Há quem diga que Adalberto mantinha relações constantes com uma China Blue do discreto casebre. Com o passar dos anos Amélia desistiu de tentar alertar Eulália, que era a única que não enxergava as traições do marido. Talvez não quisesse enxergar para não quebrar o encanto, ninguém sabe ao certo. O fato é que Rosália e Amélia abandonaram a linda cidadezinha onde nada acontece. Prometeram a Eulália que manteriam contato através de cartas e saíram decididas em tentar a vida na cidade grande. Quem sabe lá poderiam mudar de postura em relação ao amor...


Passaram a noite inteira dirigindo e divagando a respeito da traição. Será que a fidelidade virou um mito moderno?


***

ps: Participo de um grupo-literário onde cada um dos integrantes lança um tema, em um prazo de tempo, para os demais desenvolverem a escrita (seja através de contos, dissertações, letras de músicas, poesias, ou qualquer outra vertente criativa). Escrevi o conto Cidade Perdida para o tema Traição, espero que tenham gostado! ;-)

2 comentários:

Claudia Schmitt disse...

adorei teu texto, consegui visualizar bem as personagens e principalmente a pacata cidadezinha, a unica coisa ruim é que queria que ela tivesse um final, o que será que aconteceu depois ???
...

beijo klau

Proud Mary disse...

A idéia é exatamente essa, Klau: a história não ter um fim definido.
Deixei o final a critério da imaginação do leitor! ;-)

Beijos